A "reforma" que promete limpeza mas entrega o Poder às cúpulas partidárias
Por Redação | Amazônia Realidade
Brasília (DF) - Sob o discurso sedutor de “aproximar o eleitor do parlamentar” e “barrar criminosos”, a proposta de voto distrital misto desengavetada por Hugo Motta (Republicanos-PB) esconde o velho e conhecido projeto de poder das oligarquias que dominam o Congresso. É uma armadilha perigosa para a democracia, que promete limpeza mas entrega mais coronelismo, promete representatividade mas concentra decisões nas cúpulas partidárias.
A narrativa é perfeita para o momento. Em meio aos holofotes sobre a atuação de facções criminosas, a Câmara dos Deputados, liderada pelo presidente Hugo Motta (Republicanos-PB), resolveu desenterrar uma velha proposta de reforma eleitoral: o voto distrital misto. A justificativa de fachada é nobre: criar uma ligação direta entre o cidadão e seu representante e, crucualmente, “dificultar a entrada do crime organizado na política”.
No palco, o relator Domingos Neto (PSD-CE) repete o script com convicção. Afirma que, com distritos menores, a imprensa e os adversários poderiam focar nos candidatos, impedindo a eleição de criminosos. Soa lógico? Soa. Mas é uma falácia que ignora a geografia do poder no Brasil.
A farsa do anticrime e a realidade do Poder
A tese de que o distrital misto é um antídoto contra as facções é frágil e ingênua, quando não deliberadamente enganosa. Como bem aponta o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), a proposta sugere que redesenhar mapas eleitorais afastaria organizações que justamente controlam territórios. A lógica é perversa: em um distrito dominado por uma milícia ou facção, a coerção do voto se tornaria ainda mais fácil. O eleitor estaria ainda mais refém do poder local.
A diretora-executiva da Transparência Brasil, Juliana Sakai, lembra o óbvio: o sistema majoritário, usado para prefeitos, não impediu a eleição de gestores com supostas ligações com o crime em 2024. O problema não é o sistema eleitoral, mas a impunidade, a fraqueza da Justiça Eleitoral e a corrupção endêmica. A solução real passaria pelo fortalecimento dessas instituições, não por uma mudança cosmética que serve de cortina de fumaça para outros interesses.
O ataque calculado aos “antissistema” e o fortalecimento do Centrão
Se o argumento anticrime não se sustenta, qual é o verdadeiro motor por trás dessa movimentação? A resposta está nos bastidores, onde políticos do chamado Centrão – a ala fisiológica e com maior poder de barganha no Congresso – esfregam as mãos.
O sistema atual, proporcional de lista aberta, tem seus defeitos, mas permite que vozes dissonantes, representantes de minorias e “puxadores de voto” com grande apelo popular – muitas vezes críticos do establishment – consigam chegar ao poder e, com sua força individual, carregar colegas menos votados. Foi assim que um Nikolas Ferreira (PL-MG) ou um Guilherme Boulos (PSOL-SP) elegeram bancadas. São políticos que, com seus discursos, mobilizam eleitorados e desafiam a velha política.
O distrital misto é um tiro de canhão nesse fenômeno. Metade das vagas viria de distritos, onde o candidato mais votado vence. A outra metade seria preenchida por listas fechadas partidárias – uma sequência de nomes definida a portas fechadas pelas cúpulas dos partidos.
O resultado?
1. O fim do “puxador de voto”: Um influencer digital ou um líder comunitário com milhões de votos elegeria apenas a si mesmo. Sua capacidade de amplificar a representação de sua pauta no Congresso seria drasticamente reduzida.
2. O poder absoluto das cúpulas partidárias: Quem definiria a lista fechada? Os Gilberto Kassabs da vida, os presidentes de partido que negociam cargos e verbas nos gabinetes do Planalto. O voto de opinião, aquele dado a um projeto ou a uma pessoa, é esvaziado em favor do voto cego no partido. O cidadão perde a capacidade de escolher; ele apenas confia na sabedoria dos chefões.
3. A perpetuação das oligarquias: Imagine um distrito no interior dominado por uma família tradicional. Seria quase impossível para um outsider desafiar aquele feudo. O sistema, na prática, pode “vereadorizar” a Câmara Federal, criando 513 mini-feudos onde coronéis locais se perpetuariam no poder.
Consequências para o povo: menos voz, mais poder para quem já tem
Para o cidadão comum que mora nas cidades, as consequências são graves. A promessa de “um deputado para chamar de seu” é ilusória. Na prática, você terá um representante que, para se eleger, precisará agradar aos poderes locais do seu distrito. Questões nacionais e de vanguarda podem ser deixadas de lado em favor de um fisiologismo ainda mais arraigado.
Minorias políticas e ideológicas – como partidos nanicos, ambientalistas, defensores de causas progressistas ou conservadoras de nicho – teriam sua representação drasticamente reduzida, pois dificilmente venceriam um distrito majoritário. Sua voz, já abafada, seria silenciada.
Conclusão: uma reforma que adoece a democracia
A proposta de voto distrital misto, neste momento e com esta motivação, não é uma reforma para modernizar ou moralizar a política. É uma manobra de poder. É o Centrão, vestindo a máscara da moralidade, usando o justo pavor da população com o crime organizado para aprovar uma reforma que, no fim, fortalece seus próprios interesses, enfraquece a oposição por meio de ferramentas democráticas e sela o controle das cúpulas partidárias sobre o Legislativo.
É uma jogada de mestre: vendem ao público a ideia de que estão combatendo as facções, quando, na realidade, estão é combatendo a pluralidade. Enquanto a população discute um fantasma, os políticos com dinheiro e poder de barganha preparam o terreno para garantir que o poder continue exatamente onde sempre esteve: nas mãos de poucos. O Congresso, que há anos rejeita mudanças eleitorais profundas, só resolveu mover esta peça agora porque ela, finalmente, serve aos seus donos. O povo, mais uma vez, é que sairá perdendo.
Fonte: Câmara dos Deputados
Foto: Divulgação/Internet

Postar um comentário